thanks to Danuta Radomska
Pop-up “Alice Through the Looking Glass”. Em Russo.
Ilustrações: Maxim Mitrofanov
@maxim_mitrofanov_illustrator
Arquitetura de papel: Oksana Ivanova
Publicado por AST em 2023
Disponível em @ruslaniabooks
Estou aqui encantada com essa joia rara que é a edição pop-up de Alice através do Espelho ilustrada pelo russo Maxim Mitrofanov e me batem a porta memórias de leituras e experiências. Quando tinha 5 anos ganhei uma edição de pop-up estilo carrossel de “João e Maria” dos irmãos Grimm que nunca mais encontrei, e dessa inspiração criei mais ou menos na época fantoches de meia e construí a casa de doces e biscoitos e escreveria e atuaria em uma peça de teatro pós-moderna sobre esse conto de fadas na escola aos 12 anos. Nesse percurso vivi intensamente essa ideia efervescente de que livros e seus moradores guardam mistérios e surpresas que atravessam limiares.
Disse uma vez o escritor italiano Giorgio Manganelli em sua brilhante leitura paralela das aventuras de Pinóquio: “Um livro a gente não lê; a gente se precipita nele. Ele está, a todo instante, em torno de nós”. E se abrir a capa de um livro for mesmo como abrir a primeira porta que nunca mais se fecha, revisito em Alice através do Espelho, uma história tão conhecida em que já mergulhei, ilustrei e atravessei tantas vezes, e reencontro com seus personagens que levantam da horizontalidade da folha e vivem comigo o desejo de que ganhem vida própria.
Eliza, a heroína do conto “Os Cisnes Selvagens” de Hans Christian Andersen, tinha um livro mágico de figuras, no qual tudo estava vivo. Os pássaros cantavam, e as pessoas saíram do livro e falaram com a menina e seus irmãos; mas, quando as folhas se viraram, voltaram a seus lugares, para que tudo estivesse em ordem. Com a memória desse conto, o filósofo Walter Benjamin discute se são mesmo os personagens que saltam do livro ou se são as crianças que mergulham na leitura de seus livros ilustrados.
Diante dessa caixa mágica eu responderia que acontecem as duas coisas. Os
personagens saltam das páginas fisicamente, como se quisessem criar vida
própria me lembrando dos clássicos da literatura infantil brasileira de
Monteiro Lobato, em que os personagens das histórias de Dona Carochinha
fogem dos livros para viverem novas aventuras no Sítio do Picapau
Amarelo. Alice também visita o sítio nessa aventura intertextual. Tenho a
hipótese de que possa ter sido uma possível inspiração de Lobato para a fuga
dos personagens pode ter sido a visão de uma ilustração pop-up em uma
edição específica de Alice no País das Maravilhas ilustrado pela inglesa
Ada Bowley, cujas ilustrações estão nas primeiras edições de Alice no
Brasil, adaptadas e publicadas por Lobato em 1931. Na capa do livro
vinham as palavras “Come to live panorama”.
Nesse caso específico do pop-up do espelho, abrir o livro não é só atravessar uma porta, mas também, literalmente, atravessar o espelho e entrar no gabinete de curiosidades da loja da ovelha, que considero o lugar mais mágico e quântico de toda essa obra de Lewis Carroll, com estantes repletas de desafios a serem desvendados, mas que se tornam vazias quando olhamos para elas. Aqui o olhar brinca de esconde-esconde, a mão brinca de era outra vez, a imaginação atravessa portais inesperados. Ao mesmo tempo, nos tornamos também Alices, interagindo com as cenas como num jogo de uma história sem fim, conversando com os personagens e dando vida aos desafios que o texto de Carroll nos apresenta e Mitrofanov e Ivanova nos convidam a jogar também.
BENJAMIN, Walter. Livros infantis antigos e esquecidos. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,1993
Images from: Ruslania bookshop
3 filmes de Alice editados com música ao vivo e jogos de palavras imbrincados em estado de livre improvisação. Assim que cheguei Alice se levantava e desdobrava no plano astral num truque cinematográfico de um filme muito antigo (1915). Entrei em uma experiência de liminaridade entre o sonho e a vigília. Como um sonho lúcido viajando dentro do sonho de outra pessoa que viaja dentro do sonho de outras pessoas que viajaram no sonho de Lewis Carroll. Uma viagem entre registros, texturas, materialidades, editados na ação e na paixão do tempo. Modular, repetir, insistir, sobrepor, diluir, estender, borrar, arranhar, acoplar, fluir e tantos outros verbos. No limiar entre a narrativa, a memória de cenas e personagens tão conhecidos e a história que se perde numa espécie de não lugar. Filmes queimam como óleos psicodélicos no limiar do desconhecimento. Alice é matéria prima na qual podemos nos perder, deslocar e multiplicar sentidos, já que o nonsense é a “falta de sentido que produz excesso de sentido”. E é sempre bom lembrar também que, como disse Deleuze, o sentido se passa na fronteira.
De Alice em Alice, Adriana Peliano (ela estuda e vivencia Alice desde criancinha) se abriu em Maravilhas! Uma destas é seu Livro Fabuloso (palavra esta, por sinal, aqui muitíssimo bem empregada), cujo texto não se perde em narrativas, senão que se lança a um alcance inusitado, fruto do criativo diálogo que trava com as ilustrações às quais ele pertence.
É preciso que se diga: essas ilustrações que dão vida a ‘Alice em 7 Chaves’ (64 páginas, Ed. A Mascote, Belo Horizonte, 2021), são colagens de Adriana feitas sobre outras ilustrações das clássicas edições de ‘Alice no País das Maravilhas’, de Lewis Carrol (1832-1898), e ainda sobre obras de expoentes mestres da pintura como Claude Monet e Hieronymus Bosch, dentre outros artistas alicelucinantes, obras e ilustrações estas das quais a artista-autora incorpora fragmentos e cria associações oníricas por meio de sobreposições e deslo(u)camentos. Só vendo mesmo essa loucura pra poder admirar!
Em ‘Alice em 7 Chaves’, um verdadeiro Reino do Impossível, também vale seguir os conselhos da Rainha Branca: antes que abramos sua primeira página, melhor é já nos pormos a acreditar em pelo menos 6 coisas impossíveis, isso tudo ainda antes do café da manhã. Até porque nesta obra, texto e ilustrações (todas incríveis, dotadas de sedutora riqueza estética) funcionam juntos numa conversa afiada inaudita, capaz de encantar qualquer Chapeleiro Louco.
Se por um lado Peliano põe seus leitores num labirinto, por outro nos oferece 7 Chaves com as quais nos convida a abrir Mágicos Portais, acesso todos eles para aventuras Alissurreais, em que a única lógica presente são a do assombro e desconcerto, envoltas nas brumas de sonhos alicisérgicos através dos quais, conduzidos pela pena e arte de Adriana, somos alçados a mundos outros impensados, repletos de desafios enigmágicos e divertimentos a dar à sua criação um caráter de livro-jogo, um fértil combinatório de imagens e ideias que se desdobram feito mandalas que, por sua vez, se transformam em relógios, alixires, maluquices florosóficas, trasflormações e metamorflores, viagens alicináticas, jogos enigmágicos e outras malucalices tão reais, mas tão reais, que são puro faz-de-conta.
A grande questão, esclarece-nos a autora, é que quando Alice chega ao jardim da Rainha Branca, pouca gente disso se dá conta (não sei de ninguém que antes assim me tenha dito), não é lá o Jardim da Realização que ela, Alice, antes havia visto, no início da história, através da fechadura de uma daquelas portinhas que havia no buraco em que caíra. Diante disso, propõe-nos a autora: “Resta saber se algum de nós saberia chegar até ele”. Daí o porquê das 7 Chaves, todas mágicas, para que tentemos com elas acessar nossa oculta e mais feliz realização pessoal, aquela que habita esse Jardim em que nossa alma, distante de tudo que ilude ou mais engana, se descobre pura feito Alice num Mundo de Maravilhas.
SERVIÇO: Essas pedras preciosas, esses raros exemplares de ‘Alice em 7 Chaves’ (todo maluco criativo que se preze precisa rapidalicemente ter o seu) podem ser adquiridos com a própria autora, pelo e-mail: alicemaravilha@gmail.com R$ 80,oo (este valor geralmente já inclui o frete, mas consulte a autora) OBS: se for dar de presente: ATENÇÂO: o Ministério da Saúde adverte: este livro pode causar surtos de alicespantos; portanto, só presenteie gente realmente criativa a quem falte pelo menos um, senão os 4 dentes do siso. Isto porque gente cartesiana periga não entender nada de nadinha mesmo.
SOBRE ELA: Adriana Peliano é artista visual, ilustradora, colagista e especialice que, entre outras maravilhas, em 2009 fundou a Sociedade Lewis Caroll do Brasil, da qual é Presidente.
TAMBÉM INCRÍVEL: ‘Alice em 7 Chaves’ traz um QR code (e ainda um link) que dão acesso a uma igualmente fabulosa trilha sonora composta pelo músico Paulo Beto; são músicas para que nós, leitores, possamos viajar ao tal Jardim Secreto da realização. Quem de nós, em sã consciência alicedélica, não amaria encontrar o seu? BILÍNGUE: Você pode optar por obter seu livro também na versão em inglês: 'Alice and the 7 Keys' (Underline Publishing, 2021).
Paulo Urban: www.amigodaalma.com.br
“O grande paradoxo que percorre as aventuras de Alice, diz Deleuze, é a perda do nome próprio, identidade infinita, eterno devir. Quando a lagarta pergunta para a menina, quem é você? Alice não sabe a resposta. Eu sei quem EU ERA mas tenho me transformado várias vezes desde então. Num paradoxo Alice diz que não, mas também diz que sim: sei quem sou, contínua transformação. Como Alice, quando parece que sabemos quem somos, já somos outros, e o que achamos que somos é o que um dia fomos. E o mundo que conhecemos já é outro a cada instante. Menina que nasceu no rio de Heráclito, que sabe que o ser e o não ser conversam todo tempo, num eterno ciclo de se criar a todo momento.
Quando Alice diz que só sabe quem foi, diz que estamos sempre em movimento. E quando foi ilustrada por John Tenniel na Inglaterra vitoriana, inaugurou uma tradição de Alices que seguiram o seu caminho. Mas Alice já não é mais a Alice vitoriana, mas o caleidoscópio vivo de todas as possibilidades. Quantos artistas foram de fato movidos pela necessidade de superação dos modelos estereotipados da menina e seu mundo surpreendente, e pela procura por novas aventuras na linguagem?”
PELIANO, Adriana. A caça à Alice em 7 crises.
LITERARTES. “Publicação científica digital do grupo de pesquisa Produção literária e cultural para crianças e jovens da USP”.
Suzy Lee
“Em diferentes encarnações novas Alices não buscam reproduzir em imagens o que está escrito nos livros, mas de viajar em suas veias e teias, entre mergulhos, travessias e cogumelias. Inúmeras alicinações podem ser criadas desvairando em paradoxos, línguas inventadas, desejos nômades, metamorfoses sem cabeças, sonhos dentro de sonhos, caminhos erráticos, risos loucos pairando no ar, desloucamentes. Ao invés da pergunta: quem é Alice, hoje desdobram caminhos para quem Alice pode tornar-se...”
Alicis Especularis.
LINK
Sendo pesquisadora, colecionadora e apaixonada pelas aventuras de Alice, é comum as pessoas me perguntarem que edição brasileira eu recomendo. A resposta é sempre, depende. Existem diferenças mais ou menos evidentes entre as traduções e adaptações e seus propósitos específicos, entre ilustradores e linguagens estéticas, entre múltiplas possibilidades gráficas expressas no design e que se traduzem na materialidade do livro. Também é importante levar em conta abordagens editoriais distintas que se consolidam através de notas, posfácios, prefácios e apêndices que favorecem um aprofundamento do leitor no texto e no contexto da obra.
Uma outra questão que é particularmente intrigante em se tratando de Alice é: que edições de Alice a pessoa já tem e o que espera dessa primeira ou dessa nova edição? Quer uma edição com conteúdo de referência e pesquisa e uma tradução de maior relevância acadêmica ou quer uma edição de colecionador artisticamente mais ousada e desafiadora? As vezes essas características se combinam, outras vezes não. Para quem é o livro? Qual a relação que o leitor tem com arte e literatura? É criança? É adulto? Que critérios são mais relevantes para você?
A Toca do Coelho. YAYOI KUSAMA. 2012.
Essas são as páginas do livro que foi lido durante o evento "Um dia Alice", em 11 de abril de 2010.
Exemplar único produzido para o evento, não foi publicado.
Seleção de textos e imagens: Adriana Peliano.