27 November 2009

ENTREVISTA: NICOLAU SEVCENKO

fonte: Site da editora Cosac Naify


Interview with the historian and translator Nicolau Sevcenko. His translation of Alice in Wonderland has just been reissued by the Brazillian art publish house Cosac Naify. In this interview he talks about the importance of the book and the main features of the performed translation.




ALICE, NOSSA HEROÍNA E INSPIRADORA

Por Livia Deorsola

Alice no País das Maravilhas é “a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos.” A definição é de Nicolau Sevcenko, que, além de apaixonado pela obra-prima de Lewis Carroll, é um de seus melhores tradutores. Historiador e professor da Universidade de Harvard e da USP, ele volta ao texto do autor inglês na nova edição da Cosac Naify, uma versão completa do original de 1865, somente agora com a tradução inédita dos poemas. 

Sevcenko assina também um posfácio exclusivo, contextualizando o período vitoriano em que o livro foi escrito e a crítica à sociedade implícita na narrativa de Carroll. Centra-se, sobretudo, na submissão das crianças à disciplina puritana que tolhia a liberdade lúdica.

Na entrevista a seguir, o tradutor fala, ainda, sobre a visita que fez aos locais onde viveram Carroll e a família de Alice, e ressalta seu maravilhamento diante da “poesia visual ao mesmo tempo delicada, onírica e estranhamente desconcertante” criada pelas ilustrações do artista plástico Luiz Zerbini. 
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O que o levou a traduzir Alice no País das Maravilhas?

Sempre fui apaixonado pelo livro. Sabendo disso, a Cristina Carletti, então editora da Scipione, me convidou para traduzi-lo (no final dos anos 80 ou início dos 90, não lembro bem). Eu disse que gostaria de fazer o texto na íntegra, e não apenas uma adaptação. Na época, eu estava bastante ocupado – com aulas, pesquisa, artigos, livros –, por isso o processo da tradução foi bastante árduo e lento, e levou cerca de um ano para ficar pronto.

O resultado acabou se tornando até mesmo parte de pesquisas de mestrado e doutorado, no Brasil e no exterior, que comparavam diferentes traduções da Alice, o que me deixou muito contente. Minha tradução foi também escolhida para ser transcrita em braile pelo Instituto dos Cegos do Brasil, o que mais me deixou feliz.


Para esta nova edição, o senhor retraduziu os poemas originais de Lewis Carroll. O que mudou?

Na ocasião em que fiz o trabalho pela primeira vez, decidimos usar parte dos poemas traduzidos pelo Geir Campos, para não atrasarmos o cronograma. Então aproveitamos algumas das poesias mais longas e complicadas. Agora, eu mesmo traduzi todos os poemas. Encarar os jogos gramaticais, semânticos, contextuais, poéticos, filosóficos, estéticos e éticos das poesias e canções do livro foi um desafio enorme. Mas quanto maior a complexidade e amplitude do desafio, maior é o prazer de enfrentar e se divertir com o jogo. É uma espécie de toque-emboque de palavras e imagens que a gente tem que encarar com coragem, porque se a gente vacila, por trás ecoa a voz ameaçadora da Rainha gritando: – Cortem a cabeça dele!


O senhor visitou os lugares onde viveu e trabalhou Lewis Carroll, em Oxford. Como foi a experiência?

Só pude visitar Oxford no fim dos anos 90, quando fui convidado para participar de um evento acadêmico no Saint Anthony's College da Universidade de Oxford. Fiquei excitadíssimo com a possibilidade de conhecer de perto o cenário da vida de Lewis Carroll e das irmãs Liddell [sobrenome da família de Alice]. Fiz uma pesquisa básica sobre os lugares por onde eles andavam e pelas circunstâncias e contextos que foram incorporados no livro, e me diverti muito fazendo o roteiro. Lá, naturalmente, tanto o pessoal da Universidade quanto os habitantes são fãs incondicionais da Alice, e quase todo mundo tem uma anedota para contar, algum fato inusitado, algum lugar menos conhecido, fofocas sobre a identidade secreta dos personagens, sobre o que Carroll aprontava na Universidade, sobre a família Liddell e as meninas. Foi uma delícia e aprendi maravilhas, literalmente.


No posfácio feito para esta edição, o senhor ressalta a sátira ao mundo dos adultos, liberando as crianças para a espontaneidade e para sua vocação lúdica. Qual o sentido que esta interpretação, vinculada ao contexto vitoriano, mantém?

O livro apresenta um mundo atravessado de irracionalidade, de situações absurdas e de diálogos desconcertantes, e, no entanto, é movido por uma lógica política implacável. Ele representa uma ordem opressiva em que prevalecem a violência, o medo, a coação, as ameaças, que se impõem de cima para baixo, numa estrutura hierárquica em que os mais fracos e vulneráveis são os mais expostos a atos arbitrários. É exatamente como se sentem as crianças e os jovens, num mundo dominado por gente grande, arrogante, autoritária e brutal. É como se sentem também as pessoas pobres, os deficientes, as minorias, os estrangeiros, os imigrantes e as criaturas da natureza. Alice, não nos esqueçamos, é uma estrangeira no País das Maravilhas.

O outro lado da história, ainda mais fascinante, é que, sendo uma criança, Alice não incorporou ainda a norma e o hábito da subserviência. Nesse sentido, onde quer que ela detecte alguma situação de prepotência ou desrespeito, imediatamente reage e encara o ser truculento de igual para igual, sem medo e sem dobrar a espinha. Ela implode a lógica do autoritarismo vitoriano. É nesse sentido que ela é a nossa heroína e inspiradora. Só uma criança pode ter esse desprendimento de ignorar as regras que sustentam um sistema opressivo. Tal como o menino que um dia gritou que “O rei está nu!”. Portanto, Alice ainda é e sempre será a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos.


Um dos trechos mais conhecidos da obra é o momento em que aparece a Rainha de Copas e seu particular senso de justiça – a sentença antes do veredicto. Qual a leitura política que se pode fazer desta passagem?

O livro todo é uma grande alegoria sobre os mecanismos que sustentam sistemas de poder e como desarmá-los. Eu sei que dizer isso soa como uma aberração e parece extrapolar o universo de um livro infanto-juvenil. Mas esse é o verdadeiro mistério pelo qual essa obra é das mais lidas, traduzidas e admiradas da cultura ocidental: ela comporta imensas ambivalências e cria uma realidade limiar, que tanto pode ser entendida como uma fábula para jovens, quanto como uma das mais percucientes alegorias políticas.





Além de historiador, o senhor é interessado por diversas áreas, como literatura e cinema. Dentro desta perspectiva múltipla, quais são as aberturas que Alice no País das Maravilhas oferece ao leitor?

A Alice é uma história com uma esplêndida força visual. É por isso que as ilustrações e os ilustradores sempre foram parte integrante e decisiva do livro. Essa é a razão também porque essa obra pode ser vertida fácil e admiravelmente para qualquer linguagem performativa: teatro, cinema, desenho animado, quadrinhos, dança, música, ópera (acho que até hoje ninguém ainda teve a ideia genial de montar uma ópera sobre a Alice, mas fica aqui a sugestão para quem tiver a coragem e o bom-gosto!).

Ilustrações de Luiz Zerbini.