arte: Adriana Peliano | foto: Marcelo Dust
UMA ALICE SUBTERRÂNEA
Adriana Peliano
O artista terá, tal como Alice no País das Maravilhas, que atravessar o espelho da retina para alcançar uma dimensão mais profunda.
Marcel Duchamp
Este livro é um presente de amor, uma história especial contada em um passeio de barco numa tarde dourada. Ali nasceram as aventuras de Alice, viajante do subterrâneo, do país das maravilhas, do outro lado do espelho, e até mesmo do Sítio do Picapau Amarelo, onde fez reinações com Emília e Narizinho em alguns livros de Monteiro Lobato.
(Aventuras de Alice no Sítio do Picapau Amarelo)
Traduzi aqui o manuscrito original das Aventuras de Alice no Subterrâneo, projeto que iniciei ainda na década de 1990, perseguindo a ideia de recriar o manuscrito de Alice Liddell em português, para que pudéssemos no Brasil também receber esse presente. Myriam Ávila conta aqui a história do manuscrito – além de ter traduzido os poemas do livro, estudiosa que é do nonsense inglês. As ilustrações de Carroll foram preservadas nesta tradução, assim como a diagramação das páginas, e sua letra de mão foi recriada digitalmente. Com isso, a minha intenção era recuperar o charme e as peculiaridades do original, que se perderiam com uma tipografia e um design convencionais.
Veja as páginas do manuscrito das
Me chamaram a atenção nesse manuscrito as ilustrações criadas pelo próprio Lewis Carroll. Quando Alice no País das Maravilhas foi publicado pela primeira vez em Londres, em 1865, a criação das ilustrações ficou a cargo de John Tenniel, o famoso ilustrador do periódico vitoriano Punch, que também ilustrou Alice através do espelho em 1872. Na Inglaterra ainda se acredita que raramente um autor foi tão bem servido por um ilustrador como Lewis Carroll foi por John Tenniel, mesmo a obra tendo sido ilustrada por centenas de artistas em todo o mundo.
É bom lembrar que, desde o início do século XX, produziram-se, nas mais diferentes linguagens visuais, Alices em variados estilos: art noveau, art déco, surrealista, pop, psicodélico, futurista, gótico, naïf, étnico, dark, steampunk, e tantas outras mil maravilhas. Não conheço menina tão viajada, retratada e reinventada.
As ilustrações de Tenniel ainda são consideradas por muitos as mais importantes e inseparáveis da obra, devido em grande parte à fidelidade ao texto e ao espírito de sua época. Por isso, é possível dizer que toda a história das ilustra ções de Alice no século XX foi acompanhada por uma certa “angústia de influência”, em relação ao trabalho de Tenniel. Na maior parte das vezes, o que se viu foi celebração, respeito, referência, reverência ou mesmo repetição acomodada de suas soluções, segundo pretextos e ditames mercadológicos.
John Tenniel
Entre as seguidoras da Alice de Tenniel, podemos incluir a própria Alice da Disney: loira, comportada, de sapatinho de boneca e avental branco de inspiração vitoriana. Em raros momentos encontramos artistas movidos pela necessidade de superação dos modelos estereotipados da menina e seu mundo surpreendente e pela procura de novas abordagens e aventuras de linguagem.
Walt Disney
Recentemente, no entanto, podemos perceber que esse quadro vem mudando. Hoje proliferam no imaginário de Alice novas “alicinações” e jogos metalinguísticos atraídos pelos paradoxos e labirintos da obra de Carroll. Com todo esse universo de possibilidades, ainda são poucas as edições de Alice que, como esta, vêm acompanhadas das ilustrações originais de Carroll. Afinal, ele não ilustrou propriamente Alice no País das Maravilhas, mas o seu esboço. Felizmente, e com grande sensibilidade, comentadores contemporâneos, como Martin Gardner, Sebastião Uchôa Leite Lauro Amorim, não compartilham da opinião, quase unânime na época de Carroll e ainda hoje muito divulgada, de que essas ilustrações são desprezíveis artisticamente, mantendo seu interesse apenas como curiosidade pitoresca. Também devemos superar tal preconceito, visto que as ilustrações de Carroll podem ser reavaliadas contemporaneamente com uma sensibilidade renovada.
De fato, Carroll não é um desenhista de qualidade técnica excepcional, mas suas imagens causam um forte impacto. Elas fazem pensar na diferença entre um bom desenhista e um bom ilustrador, aquele que transita nas entrelinhas do texto e abre muitas portas na nossa imaginação. Suas ilustrações são fascinantes, mostrando de forma mais aguda como foram concebidos esses curiosíssimos personagens. Os desenhos são desproporcionais e toscos, se comparados aos padrões acadêmicos. O estilo é irregular, o que é visível no caso da própria Alice, cujas irregularidades se tornam significativas, visto que na história a personagem se transforma tantas vezes até perder a noção de sua própria identidade.
O caráter primitivo dos desenhos de Carroll produz certo desconforto, é como um elogio ao estranho, em grande parte irresistivelmente ligado ao espírito do texto. A Alice de Tenniel, por outro lado, ainda que seja cativante, é mais comportada, convencional, fria, hierática e distante do que acontece ao seu redor. Já a de Carroll exala uma sinistra melancolia, ao mesmo tempo que nos encara com olhares perturbadores e enigmáticos. Seus desenhos são fascinantes pela espontaneidade, numa delimitação incomum do mundo.
A mudança de perspectiva entre Carroll e Tenniel poderia estar vinculada à compreensão do mercado de literatura infantil da época e à necessidade de ilustrações acessíveis e mais confortáveis para o grande público. Carroll, porém, tinha um espírito mais livre e descomprometido com as restrições do mercado editorial vitoriano. É possível observar que grande parte das ilustrações de Alice, seguindo a trilha de Tenniel, também deixou de lado a complexidade e o estranhamento da obra, buscando uma leitura mais fácil e agradável.
Lewis Carroll
Várias gerações conheceram Alice pelo desenho da Disney, conservador e adulterado em relação à obra original, mas ao mesmo tempo inventivo, brincalhão e sedutor. Hoje, nossa heroína luta em batalhas virtuais e aventuras tecnológicas, convivendo com um imaginário caleidoscópico na internet. Diante desse mundo vertiginoso de proliferações infindáveis, voltamos à aparente simplicidade dos desenhos criados para entreter uma criança vitoriana. Há quem acredite que, se as ilustrações de Carroll não são hoje tão apropriadas para o público infantil, por outro lado são bastante sugestivas para o público adulto, mais predisposto a se aventurar nos subterrâneos da obra. Crianças e adultos, somos todos convidados aqui a descobrir um novo olhar quando encontramos figuras que intensificam as noções de “viagem”, de descida no poço profundo, permitindo ao leitor a percepção da entrada em outro mundo, regido por outras leis. As ilustrações de Carroll estimulam um encontro com o desconhecido, a incerteza, o mistério, o mundo dos sonhos – tons definidores de uma identidade móvel e mutante, em contínua transformação. Neste livro, voltamos, em texto e imagem, à história de Alice em seu estado bruto, com toda a sua poesia e singularidade.
O estilo de desenho de Carroll, que parece naïf, está mais perto da modernidade – capaz de revalorizar seu tra ço “primitivo”. Alguns desses desenhos são marcados pelo espírito do nonsense que o liga aos clássicos limericks de Edward Lear, outro mestre do nonsense inglês. O desconforto de Alice em suas metamorfoses já foi comparado à angústia de Gregor Samsa em A metamorfose, de Kafka. Podemos também pensar que, se Carroll se inspirou diretamente nos artistas pré-rafaelitas, em suas mulheres etéreas e olhares oblíquos, não estariam suas Alices elásticas e metamórficas e seus personagens híbridos e bizarros mais próximos dos seres grotescos das pinturas de Bosch? Não estariam esses desenhos entre os precursores dos bestiários surrealistas, com seus mundos oníricos e monstros fabulosos?
Vale lembrar que o escritor e pensador surrealista André Breton reconheceu as inegáveis influências de Carroll, e artistas do mesmo movi mento, como Salvador Dalí, Magritte e Max Ernst, também se inspiraram em Alice em suas criações enigmáticas. Alice começa a história perguntando o sentido de um livro sem figuras nem diálogos. Esse manuscrito cria justamente uma série de diálogos entre textos e imagens. Seus textos se tornam desenhos, e os desenhos dialogam com o texto, brincando na página e ousando no espaço. O conto (tale) do rato ganha a forma do seu rabo (tail), num jogo de linguagem que abriu novos caminhos. Carroll já pensava o livro como um jogo gráfico, explorando várias possibilidades de composição. Nesse sentido, suas páginas prenunciam, em parte, as histórias em quadrinhos do século XX.
Os desenhos de Carroll são, portanto, um presente dentro de outro. E esta é uma réplica de um dos presentes mais preciosos que uma menina já recebeu em seu “desaniversário”, uma carta de amor escrita não apenas para aquela que foi um dia considerada “o ideal de menininha” por Lewis Carroll, mas para todas as meninas do mundo. Intenso convite para o universo de Alice/Carroll, que num dia especial mergulhou num poço profundo, e ainda nos convida a mergulhar também.
Referências Bibliográficas
AMORIM, Lauro Maia. Tradução e adaptação: encruzilhadas da textualidade em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, e Kim, de Rudyard Kipling. São Paulo: UNESP, 2006.
CANTON, Kátia; PELIANO, Adriana. Lewis Carroll na Era Vitoriana: Outras histórias de Alice. São Paulo: DCL, 2010.
CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures Under Ground (Introdução de Martin Gardner). Nova York: Dover, 1965.
LEITE, Sebastião Uchôa. Crítica de ouvido. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
OVENDEN, Graham; DAVIS, John. The Illustrators of Alice in Wonderland.
Londres/Nova York: Academy Editions/St. Martin’s Press, 1979.
PELIANO, Adriana. Aventuras de Alice no Sítio do Picapau Amarelo. LEIA AQUI