24 June 2010

Desalice


Mary Kline-Misol


José Carlos Peliano

Consta nas memórias escritas, ainda que faladas entre os mais chegados e os chegados dos mais chegados, há pouco descobertas debaixo de cobertores mofados e dobrados no canto do armário do quarto onde vivia no começo do século Elgemiundo Kork, domador de cavalos selvagens, lá nos confins das pradarias do que sobrou das destruições provocadas pela série de pequenos tremores de terra na região do Entroncado, a leste de Canabrava, que os primeiros intentos feitos para criar as aventuras de Alice, aquela do país das maravilhas, tiveram um episódio inusitado conhecido apenas do seu criador e da governanta, Elnírames Vlov, quem cuidava dos afazeres domésticos e outros afazeres, além de secretariar muitas vezes os escritos de Lewis enquanto ele passeava de barco com as meninas do condado contando estórias e se envolvendo em estórias.

Depois de cada passeio, ao estar encantado e encantando entre as meninas e delas ter de volta impressões juvenis da natureza, dos bichos, das conversas e das estórias, dos personagens, da trama e do desfecho, o criador sentava em sua mesa de trabalho ao voltar para casa pegava da pena, ou melhor, das penas porque eram perto de 35, compradas aqui e ali pela novidade do formato da ponta ou mesmo do suporte muitas delas de madeira nobre para manter a consistência do contato com a mão e para ter a certeza que duraria muitos anos a bem dizer muitas escritas. Ao conceber Alice e colocá-la viva no papel entre as linhas e entrelinhas e desenhos experimentais de como ela seria, o criador chegou a esboçar o cenário inicial com ela vagando pelos jardins da casa de campo das redondezas ou da fantasia, cobertas de flores e plantas exóticas, de cores mais vivas que as mais vivas cores, até que mais inspiração chegasse e ele continuasse a desenvolver a estória.


Passava dias e dias sem voltar à mesa de trabalho, pegar uma das penas, aliás, ele tinha sua preferida, a mais afilada, de suporte de madrepérola com incrustações ornamentais, e passar a escrever a continuação do ambiente que mais tarde viria a ser conhecido como sendo das maravilhas. Decorrido um longo período, o criador, Lewis, retoma a pena e a estória, quando se depara com sua personagem em escaramuça delirante. Alice se rebela, vira-se para o criador, ao saltar do papel se livrando das palavras e frases e pergunta-lhe: afinal, o que será de mim? Estou há dias presa nessas primeiras páginas sem nada a fazer porque sem ambiente, sem rumo, sem sentido, o que você planeja para mim?

Lewis, assustado com o episódio e sem saber se delirava, já que não tinha bebido nem tomado erva alucinógena, permaneceu sem palavras, atônito, sem pensar, sob os olhos atentos de Elnírames, que cuidava de lhe fornecer papel, a moringa de água e o cachimbo tipo Sherlock Holmes que ele às vezes sugava sem fumo para ajudar a liberar a imaginação. Como ele não se pronunciou, Alice adiantou-se, empinou-se na ponta dos pés, e disse em voz alta para ele inventar coisas fantásticas e nada corriqueiras, como soe acontecer nas imaginações e sonhos infantis, a fim de lhe dar cobertura criativa e ela servir de mensageira da alegria da aventura e da aventura da alegria. Chegou a lhe dizer, também consta dos registros encontrados, que imaginasse um buraco enorme por onde ela passaria desta dimensão para outra e ultrapassaria o umbral do dia a dia para o dia a dia do umbral das maravilhas.

Ele não contou conversa porque afinal o delírio, seria mesmo delírio, poderia ficar com ele para sempre, tomou da pena preferida e continuou a anotar a estória seguindo a sugestão de Alice. Elnírames, prima de Kork, com quem teve um envolvimento amoroso sem duração, incentivou Lewis a seguir a sugestão da trilha de Alice porque era mais seguro uma vez estar ela dentro da estória e saber melhor que ele o que ser contado. Essa a Alice que veio ao mundo e que muitos conhecem; a outra, Desalice, só agora foi revelada e quem, de fato, garantiu vigor, beleza e perenidade ao país das maravilhas.


Mary Kline-Misol