Thais Vilanova
ALICE através do Espelho:
adaptação para livro-objeto (texto resumido)
adaptação para livro-objeto (texto resumido)
Imagens de Thais Vilanova
As cartas de baralho do país das maravilhas são substituídas pelas peças do jogo de xadrez no livro do espelho. As mudanças de tamanho do país das Maravilhas dão espaço às mudanças de lugar no livro do espelho. Ao atravessar para o mundo do espelho, Alice passa a viver uma lógica invertida.
Alice tenta entender o Mundo do Espelho, assimilar suas normas, regras e costumes como uma criança tentando entender o mundo. Ela atravessa o tabuleiro com peão branco até tornar-se rainha, como num jogo de xadrez. No final se revolta com aquele mundo e puxa a toalha da mesa do banquete, destruindo o ambiente antes de voltar ao mundo “real”. No livro são levantadas diversas questões relativas à existência humana que serão trabalhadas nas imagens e textos do livro a ser realizado. Alice, por exemplo, vive num eterno confronto entre aparência e essência.
Muitos elementos da história encontram paralelos na mitologia grega, Alice atravessa o espelho como Narciso se joga nas águas. Ao mesmo tempo encontra personagens e estabelece diálogos repletos de conceitos filosóficos, lingüísticos e científicos, num contraponto entre as dimensões racionais e o irracionais da mente humana.
John Tenniel
Caravaggio, O mito de Narciso
Uma das questões principais deste livro é levantada quando Alice encontra o Rei vermelho sonhando. Tweedledee pergunta a Alice com o que ela acha que o Rei está sonhando; ela responde que é impossível saber. Tweedledee fala que o Rei está sonhando com ela e afirma que caso ele acordasse, ela desapareceria como a chama de uma vela. Alice fica com medo. O livro termina com o Rei Vermelho sendo colocado em xeque mate e com retorno de Alice à sua casa. Teria o Rei acordado, justificando o retorno de Alice?
Ocorre também uma regressão ao infinito nos sonhos paralelos de Alice e do Rei. “Alice sonha com o Rei, que está sonhando com Alice, que está sonhando com o Rei e assim por diante, como dois espelhos que se defrontam.” (Martin Gardner em “Alice: edição comentada.”)
Como referencia gráfica para a criação de imagens foi escolhido o artista holandês M.C. Escher (1888-1971). Os desenhos de Escher têm origem em paradoxos, ilusões e duplos sentidos. Todo o caráter visual e matemático de seus trabalhos se aproxima muito das questões tratadas no livro de Alice, tendo em vista que o próprio Carroll era um matemático. No livro, assim como nos trabalhos de Escher, também existe a inversão da imagem, o duplo, os infinitos graus da realidade e o tempo infinito. O fato de Alice e a Rainha vermelha correrem e sempre chegarem ao mesmo ponto, pode ser facilmente relacionado com várias obras de Escher, como Drawing Hands e Metamorphosis II, que tratam os temas do eterno regresso e do conceito matemático conhecido como voltas estranhas, que determinam processes infinitos e voltas inesperadas ao mesmo ponto de partida. Os diferentes níveis da realidade em que Alice passa ao longo da história podem também ser comparados a várias obras de Escher como Reptiles, aonde existem diferentes níveis de realidade convivendo na mesma obra.
M.C. Escher, Drawing Hands
M.C. Escher, Metamorphosis II
Uma constante em todo o trabalho de Escher é a questão do isomorfismo, da auto-referência, da metalinguagem. O isomorfismo é aplicável quando “duas estruturas complexas podem ser superpostas uma à outra, de tal modo que para cada parte de uma estrutura haja uma parte correspondente na outra estrutura, onde “correspondente” significa que ambas as partes desempenham papéis similares, mas não idênticos” (Hofstader em “Gödel, Escher, Bach. Um entrelaçamento de gênios brilhantes.) Este isomorfismo está presente em “Alice através do Espelho”: sua casa é correspondente à casa de dentro do espelho, os personagens-peças de xadrez são correspondentes às peças de xadrez que se encontravam em sua sala. As casas pretas e brancas do tabuleiro de xadrez correspondem às cores brancas e pretas dos seus gatos. A gata Kitty corresponde à Rainha Vermelha. O gato snowdrop corresponde à Rainha Branca. E Alice corresponde à ela mesma.
O isomorfismo e a metalinguagem não residem somente dentro do próprio livro, mas estabelecem relações também com “Alice no país das Maravilhas” e com a própria Alice Liddell. O fato das peças de xadrez serem vermelhas e brancas relaciona-as com as cartas de baralho do primeiro livro; existem personagens que voltam a fazer parte da história com outros nomes (Chapeleiro Louco como Hatta e a Lebre de março com Haigha) e outros que aparecem transfigurados, como os reis e as rainhas dos dois livros.
John Tenniel, Mensageiros do rei, "Alice através do Espelho".
John Tenniel, Um chá muito louco, "Alice no país das Maravilhas".
Esse isomorfismo reside também no fato de Carroll colocar diversos níveis de realidade dentro de uma mesma história. Esta recorrência é um fato muito estudado pelos matemáticos. Seriam histórias dentro de histórias, filmes dentro de filmes, bonecas russas dentro de bonecas russas. Este assunto começou a ser bastante teorizado na década de 50 no estudo de inteligência artificial. Surgiram então termos como subida e descida.
A descida seria a suspensão das operações na tarefa em que se está trabalhando, sem esquecer de onde se está e então se dedicar a outra tarefa. A tarefa nova é vista como de “nível mais baixo” ao da anterior. Subir seria ao contrário, significa encerrar as operações exatamente onde se estava, um nível acima.
Salvador Dali, Metamorfose de Narciso.
Na história “Alice através do Espelho” existem alguns níveis diferentes de realidade. Quando ela entra no espelho, ela passa para outro nível. O fato de ela estar vivenciando uma história que seria parte do sonho do rei já configuraria um outro nível de realidade dentro do nível anterior. No momento em que os personagens do livro cantam uma canção citando Alice como se ela fosse um personagem, seria uma nova descida, para um nível mais inferior ainda. Alice é um personagem de uma música para os personagens do livro. A volta de Alice para a sua casa seria uma subida de vários níveis, mas não uma subida total (para a realidade), pois aquela historia está sendo contada para nós pela irmã de Alice.
O livro “Alice no País das Maravilhas” também utiliza diversos níveis de realidade dentro da história. Nos dois livros existe esta volta para a “realidade” que também não é o último nível, pois além do fato de Alice contar para a sua irmã as suas aventuras, existe o nível em que nós nos encontramos.
A utilização da metalinguagem, aliada ao fato de toda a história ser possivelmente o sonho do Rei acaba discutindo o conceito de realidade. Afinal, qual nível seria a verdadeira realidade, se é que ela existe? Quando o personagem de um livro passa a ser um personagem dentro de uma outra história nada impede que nós que estamos lendo este livro também façamos parte de um grande livro ou de um grande sonho.
A interpretação visual que faremos do livro “Alice através do Espelho” levará em conta estes momentos de descida de nível de realidade, que serão trabalhados com outra linguagem diferente do restante do livro. Quando houver esta passagem para outro nível, a imagem será representada em forma de desenho. Para a realidade dentro dos níveis, independente de sua posição hierárquica no todo, será utilizada a fotografia. Esta escolha se deve ao fato da fotografia assumir uma figuração mais real se comparada a uma pintura ou desenho. O próprio Escher utiliza a diferença de dimensionalidade para diferenciar os níveis da realidade em sua obra Reptiles.
M.C. Escher, Reptiles
Sobre a linguagem escolhida
O espelho seria uma imagem bidimensional da realidade tridimensional da casa de Alice. A entrada de Alice no espelho – sua entrada no duplo – pode ser encarada como a morte da realidade. Para trabalhar com esta relação do duplo, da imagem e da morte, foi escolhida a linguagem fotográfica como meio de expressão.
A fotografia, assim como o espelho, capta apenas um fragmento da realidade. “Toda imagem fotográfica pressupõe de maneira automática a eleição de um espaço que se decide mostrar e a eliminação simultânea do espaço que fica mais além dos limites do enquadramento.” (Zunzunegui em “Pensar La Imagen”) É exatamente a curiosidade pelo que não aparece no reflexo que impulsiona Alice para dentro do espelho.
A fotografia é capaz de transfigurar a realidade, “mostrá-la como jamais foi vista antes. Basta o flagrante da câmera para que as coisas adquiram um caráter singular”. (Lucia Santaella em “Imagem: Cognição e Semiótica, Mídia”. Assim sendo, não podemos entender a fotografia como mero espelho inocente da realidade que flagra. A alteração da realidade ocorre na fotografia, ao mesmo tempo em que, nas palavras de Barthes: “ na fotografia não posso nunca negar que a coisa esteve lá” (Barthes em “A Câmera Clara”). Esta ambigüidade acaba servindo de suporte na discussão da realidade, principalmente no caso de Alice, em que há na mesma história, o real, e sua imagem bidimensional (espelho) como um outro mundo.
Alice Liddell por Lewis Carroll.
A fotografia trabalha também com outra oposição: Presença x ausência. “Toda fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um signo de ausência (Susan Sontag em “Ensaios sobre fotografia”). É um testemunho de que a coisa existiu e não existe mais. “Presença afirmando a ausência, ausência afirmando a presença” (Dubois em “O ato fotográfico”). Esta ambivalência da presença e da ausência pode ser diretamente relacionada com as aventuras de Alice, nas quais nunca sabemos se ela realmente viveu aquilo, sonhou ou foi personagem do sonho de outra pessoa. (...)
Nas palavras de Walter Benjamin “A fotografia prepara este salutar movimento através do qual o homem e o mundo que o rodeia tornam-se estrangeiros um ao outro” (Walter Benjamin em “A obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”). Assim a foto seria como a experiência de Alice, este mergulho na imagem que não resulta em realidade, apenas em mais imagens.
Alice and Lorina Liddell por Lewis Carroll.
É impossível deixar de fazer a relação existente entre a morte e a fotografia. Ambas estão ligadas de vários modos.(...) Num nível mais metafórico, a fotografia pode ser vista como um seqüestro de um para um outro mundo. O ato fotográfico é definido por Christian Metz como ato de passagem.
Esta passagem para outra realidade e esta morte implícita podem ser relacionadas com a passagem de Alice para dentro do espelho. O duplo sempre acarreta na morte. Narciso mergulha para encontrar seu duplo e encontra a morte. Alice vai de encontro ao seu reflexo e esse fato já implica em sua morte.
Outra comparação que pode ser estabelecer entre Alice e Narciso é o caráter presente em ambos do ego alienado: “Narciso representa o ego alienado, pois ele ainda não está ligado em si mesmo. Narciso aspira unir-se a si mesmo por que está alienado de seu próprio ser.” (Edward Edinger em “Ego e Arquétipo”) “Amamos e aspiramos aquilo que nos falta” (Platão em “Simpósio”).
Alice, em seu “mundinho”, sentada em sua sala com seus gatinhos, com a lareira acesa, não tendo nenhum contato com o mundo real ou com pessoas de verdade (apenas seus gatos que ela trata como se fossem bonecas), pode ser encarada como esse ser alienado.
Alice não se encontra como pessoa ao longo da história, mas sim como imagem. O fato de ele, logo apos a entrada no espelho, desejar ser Rainha, pelo status (imagem) que isso implica, apenas reforça e demonstra essa idéia.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Vol.1. São Paulo: Editora Globo, 2000.
________ & GUERRERO, Margarita. O livro dos Seres Imaginários. São Paulo: Editora Globo, 2000.
CARROLL, Lewis. Alice: Edição Comentada. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2002.
EDINGER, Edward. Ego e Arquétipo. São Paulo: Editora Cultrix, 1989.
ESCHER, Maurita. et al. The Magic of M.C. Escher. London: Editora Thames & Hudson, 2000.
HOEFSTADTER, Douglas. Godel, Escher, Bach: um entrelaçamento de Gênios Brilhantes. Brasília: editora UNB, 2001.
JUNG, Carl. El Hombre y sus símbolos. Madrid: Editora Aguilar, 1964.
RUSSEL, Bertrand. História do Pensamento Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Ediouro, 2001.
SANTAELLA, Lucia & Winfried NÖTH. Imagem: Cognição, Semiótica, Mídia. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.