31 August 2009

Alice e o Tamanho

Ricardo Benevides

As potencialidades da transformação
 do personagem e do próprio leitor

ALICE AND THE SIZE: The capabilities of the character’s and the reader’s transformation

The changes of Alice’s size are analyzed under different approaches: biographical (scientific and mathematical interest of Carroll), literary, psychological (Jungian archetypes) and philosophical (concept of paradox of Gilles Deleuze).

Foreign readers can copy the texto and immediately translate it at the Google translator

Tim Burton
Alice e os significados perdidos

Em 4 de julho de 1862, um barco a remo transportava o reverendo Charles Lutwidge Dodgson numa excursão pelo rio Tâmisa. Junto a ele, além do amigo Robinson Duckworth, estavam as três irmãs Liddell: Lorina Charlotte, de 13 anos; Alice Pleasence, de 10 anos; e Edith, de 8 anos. Cada uma recebeu um apelido, ao longo da viagem, respeitando a ordem de nascimento. Assim, Lorina foi denominada “Prima”, Alice “Secunda” e Edith “Tertia”. O evento não era algo incomum na vida daquelas pessoas, o reverendo acostumara-se a levar as irmãs Liddell em passeios pelo rio, alternando conversas e contos de fadas inventados em cada ocasião – e esquecidos nos momentos seguintes. Porém, Prima, Secunda e Tertia foram eternizadas num poema, que alude explicitamente àquela sexta-feira, naquela tarde de verão. E a história que povoou a imaginação das três meninas foi anotada, escrita e reescrita, depois publicada pelo reverendo (1865), tornando-se um dos maiores clássicos da Literatura de todos os tempos. O poema e a história foram dedicados à Alice Pleasence Liddell. E as aventuras de Alice – no país das maravilhas e depois através do espelho – alçaram o pseudônimo Lewis Carroll à posição diferenciada na história da Literatura, marcada pelo pioneirismo no tratamento das situações e também pelo uso até certo ponto incomum do recurso do nonsense para o público infantil.

Sob o ponto de vista do tratamento, bem observa Ana Maria Machado (2001:199) que Lewis Carroll é o “fundador da literatura infantil de verdade, aquela que não fica querendo ensinar nada nem dar aulinha, mas faz questão de ser uma exploração da linguagem, matéria-prima de toda obra literária de qualidade”[1].

(…) Sob o ponto de vista do nonsense, e também da construção simbólica, das invenções lingüísticas e da interpretação psicanalítica dos temas, a partir do centenário de nascimento de Lewis Carroll, em 1932, começam a surgir estudos sobre Alice em maior quantidade e com maior densidade crítica. Registram-se esses trabalhos na introdução do tradutor Sebastião Uchôa Leite à edição da Summus Editorial (1980), destacando algumas análises, principalmente as publicadas na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos (Apud COELHO, 1981:318).

Mas o processo pelo qual a obra se imortalizou em países do mundo inteiro ainda não foi completamente desvendado, à medida que ela reproduz uma série de aspectos intrínsecos à cultura inglesa, à época vitoriana. Mesmo hoje na Inglaterra é provável que o leitor de Alice não seja capaz de atingir toda a plenitude dos significados propostos por Carroll, considerando a peculiaridade dos costumes do século XIX, as menções ao folclore regional – incluindo questões específicas de sua cidade natal, Cheshire –, as piadas cujo entendimento fica restrito à cidade de Oxford e também alusões à estrutura social daquele período.

Walt Disney

O sucesso do livro entre as crianças inglesas foi indiscutível. Hoje, a hipótese mais provável é que a receptividade do público infantil na Grã-Bretanha se deva – entre todos os elementos que tornam o texto um clássico – principalmente ao fato de a maioria dos jogos de palavras ter resistido ao tempo, impregnando de interesse os diálogos e as peripécias da personagem-menina. Entretanto, é justamente a linguagem inventiva tal e qual foi concebida em inglês que impõe sérias dificuldades à tradução para outros idiomas, praticamente impossibilitando a fruição da obra por aquele aspecto. Este empecilho é sugerido por Nelly Novaes Coelho (COELHO, 1981:315), que também supõe as circunstâncias incomuns da aventura, aliadas ao recurso do realismo-maravilhoso, como explicação para o enorme fascínio exercido junto aos leitores de outras línguas, independentemente das brincadeiras com palavras do original. Estas narrativas do realismo-maravilhoso partem de situações identificadas como do mundo real, familiar ao leitor, para então fazerem irromper um algo mágico, maravilhoso, que irá alterar a ordem das coisas, no universo da leitura.

Por estas e outras razões, a professora entende a obra de Carroll como texto que ultrapassou os limites do público-alvo ao qual se destinara:

O curioso é que, com ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, aconteceu o contrário do que sucedeu com as Viagens de Gulliver ou as Aventuras de Robinson Crusoé. Livros que, escritos originalmente para adultos, acabaram se imortalizando como livros para juventude. Exatamente nos anos 50, vai-se expandir um novo e peculiar interesse dos estudiosos pela obra “infantil” de Lewis Carroll. E gradativamente, ela vem-se transformando em obra para adultos (COELHO, 1981:317).

A possibilidade de o leitor não alcançar o sentido proposto pelo autor de Alice provavelmente atormentou a todos os seus tradutores, no momento de redefinir os jogos de palavras – entre eles, Ana Maria Machado e Monteiro Lobato. O pai da Literatura Infantil brasileira, em prefácio escrito no ano de 1931, expunha o árduo da tarefa:

Traduzir é sempre difícil. Traduzir uma obra como a de Lewis Carroll, mais que difícil, é dificílimo. Trata-se do sonho duma menina travêssa – sonho em inglês, de coisas inglêsas, com palavras, referências, citações, alusões, versos, humorismo, trocadilhos, tudo inglês, isto é, especial, feito exclusivamente para a mentalidade dos inglesinhos. O tradutor fez o que pôde, mas pede aos pequenos leitores que não julguem o original pelo arremedo. Vai de diferenças a diferença das duas línguas e a diferença das duas mentalidades, a inglêsa e a brasileira (CARROLL, 1969:10).

Certo mesmo é que os livros de Alice têm sido lidos por crianças, jovens e adultos no mundo inteiro, desde o seu surgimento, resistindo às classificações por faixa etária ou por outros parâmetros.

Walt Disney

Sucessão de episódios e um fio condutor: o tamanho

Se Alice é um desses clássicos de conhecimento geral por parte do público, entre as mais diferentes culturas do mundo, há boas chances de sofrer os efeitos de um fenômeno de leitura comum a outras obras de valor equivalente: o fato de serem lembradas mais por um trecho ou incidente ao qual se atribui genialidade do que pelo todo de sua abordagem. Até porque algumas de suas passagens são tão emblemáticas – seja pelo curioso da situação ou pelo humor ou ainda por outro motivo – que se acaba por privilegiá-las na lembrança em detrimento da fruição literária da obra por completo, muitas vezes impedindo sua releitura. Em certos casos, é possível que sequer tenha havido entusiasmo numa primeira leitura, tamanha a necessidade de aceitar o texto como de qualidade indiscutível, levando o leitor a procurar os “melhores momentos”, os que justificarão o prestígio conferido ao título, e o tempo dedicado a ele.

Esta possibilidade é aventada por Roger Sale:
Não há nada contraditório no fato de esses clássicos, cheios de frases e incidentes memoráveis, não serem lidos ou relidos com muito entusiasmo genuíno. O mesmo deve ser dito em relação a Shakespeare e certamente poderia ser dito da Bíblia do Rei James. O que nos lembramos mais claramente é o que deveríamos lembrar, trechos e partes, e não temos que reler cada livro do início ao fim para voltar e destacá-los. [2]

O próprio Carroll afirmaria em um ensaio [3]: “Alice e Alice através do espelho são constituídas quase que totalmente de trechos e fragmentos, idéias singulares que vieram delas próprias”.

A idéia de uma obra fragmentária, constituída a partir da reunião de pequenos trechos cuja intensidade narrativa é maior ou menor, cujo potencial de exploração da língua e dos significados é mais latente, talvez não precisasse ser evidenciada por Sale ou pelo próprio Carroll. A simples análise do sumário da obra, observando os títulos dos capítulos, permite ver uma colagem de histórias, casos curtos que poderiam existir independentemente, não fosse o propósito do autor escrever um verdadeiro conto de fadas, seguindo uma ou outra convenção estrutural mais comum àquele gênero – como por exemplo dar-lhe um desfecho, tornando a viagem pelo país das maravilhas um sonho da menina Alice, e fazendo a correspondência ao episódio inicial em que ela lê um livro enfadonho antes de cair no sono. “A Lagoa de Lágrimas”, “Um Chá Maluco” e “O Campo de Croqué da Rainha” são capítulos que remetem o leitor a cenas muito visuais, mesmo memoráveis, seja pela descrição nada usual dos acontecimentos ou pelo inusitado dos diálogos. E ainda percebendo que estes trechos integram a cronologia das ações da protagonista, são boas as chances de eles sobreviverem tal e qual supôs Carroll, como pedaços (idéias), reduzidas obras dentro de uma obra.


Maraja

Na composição do romance, porém, também é plausível imaginar que há mecanismos para lhe assegurar o encadeamento de idéias, do contrário se teria um bom conjunto de casos de nonsense e muita dificuldade de chamar-lhe “obra”, quanto mais “clássico”. Não chega a ser propósito deste ensaio, mas a análise acerca da necessidade de um elemento de ligação entre os pequenos episódios de Alice faz pensar no conceito de “clássico” como algo relacionado ao todo de uma obra de arte, e não somente a uma ou algumas de suas partes. Seria possível a existência de um romance cujo valor artístico não permitisse classificá-lo como clássico, porém composto entre outros trechos por um capítulo de reconhecida e inigualável qualidade, episódio este atemporal, universal e definitivo sobre um tema? Existirá um capítulo ou trecho clássico em uma obra menor, no sentido de sua apreciação estética? (...)

Os episódios que compõem uma narrativa, por sua vez, localizados no tempo e no espaço desejados pelo escritor, dependem de algum recurso de ligação para garantir a sua coerência interna. Este “recurso”, elemento que irá ocasionar o fio condutor, pode se estabelecer através do ritmo, do narrador, de um limite temporal ou até mesmo de um personagem, entre outras possibilidades. E os episódios, vistos como células organizadas, precisam desta unidade para que se atinja algum dos objetivos propostos por Bourneuf e Ouellet (1976:44): a progressão ou o movimento.

Os autores afirmam que a “concordância entre o início e o final aparece como uma prova de coerência na construção da narrativa”, conceito bem adequado ao desenlace já mencionado anteriormente, em que se revela que tudo não passou de um sonho da protagonista. Mas mesmo julgando uma obra por seus episódios, a forma de eles se conduzirem cria um universo infinito de possibilidades:

O desenvolvimento central pode dar lugar a muitos encaminhamentos diversos, a bifurcações, a peripécias mais ou menos ligadas à linha principal da narrativa. As mil e uma noites apresentam uma intriga ininterrompida, em que os episódios se ajuntam e se encaixam noutros episódios, sendo o fio condutor assegurado pelo projeto de Schéhérazade que tem de captar sempre o interesse do sultão para evitar ser mandada matar (BOURNEUF & OUELLET, 1976:62-3).

Pois Alice no país das maravilhas também parece possuir este fio condutor, num recurso que percorre todas as peripécias de Alice e muda seu ponto de vista ao longo da trama. No conjunto das pequenas narrativas de cada capítulo, guardando o espanto de cada situação, há um elemento implicado decisivamente no desenvolvimento da história, permitindo a Alice interagir nos espaços e com os demais personagens de formas diferentes. Trata-se do efeito mágico capaz de alterar-lhe o tamanho.

Eric Kincaid

Doravante chamadas apenas de “problema do tamanho”, estas experiências (transformações) operam o fenômeno de integrar os episódios, dar-lhes unidade e coerência textual à medida que elas são as responsáveis por permitir à Alice entrar e sair dos recintos – igualmente de tamanho diverso à escala natural do mundo tal e como conhecemos –, alcançar os objetos mais distantes ou ter um ponto de vista privilegiado, diante das limitações do tamanho alheio.

Em proporção não menos perceptível, o “problema do tamanho” também produz em Alice mudanças de comportamento ao longo da história, ora causando-lhe regozijo, ora mexendo com seu humor – a impossibilidade de alcançar uma chave em cima da mesa, após a mudança de dimensão, deixa-a triste: “tendo se cansado de tentar, a pobre criaturinha sentou no chão e chorou”(CARROLL, 2002:17). Assumindo que o recurso percorre toda a trama, agregando seus episódios, o fato de ele impregnar a maneira de a personagem agir também evidencia uma exploração do tema e suas potencialidades, seja pelo aspecto psicológico da personagem (ou talvez dos leitores) ou pela chance de discutir filosoficamente ou fisicamente as implicações de reduzir ou aumentar.

Em nota, Martin Gardner (CARROLL, 2002:17) registra 12 ocasiões no livro em que Alice muda de tamanho. Também são numerosas as alusões ao princípio do telescópio, o qual fascinava Carroll sobremaneira, segundo a maior parte dos seus estudiosos. Na busca por informações biográficas sobre o autor, sabe-se que era professor de matemática da Christ Church e um apaixonado pela matéria numérica, tanto quanto pela observação de problemas da lógica, chegando quase à obsessão no tocante à tentativa de enxergar uma correspondência entre todos os números que o cercavam[4]. Acaba sendo a hipótese mais provável, portanto, que as experiências com o tamanho de Alice tenham se originado deste misto de interesse matemático – fundamentalmente por causa dos proporções, unidades de medida em escala e problematizações quanto a aumentar e diminuir em termos numéricos, através de operações com multiplicação – e observações sobre as descobertas das academias científicas ligadas à Física – o telescópio, entre outras.

Mas salta aos olhos que a exploração do tema, por parte do autor, vai além de simplesmente criar um motivo maravilhoso para encantar crianças, um recurso para alçar a imaginação a vôos mais altos do que uma narrativa mais descritiva e ligada à realidade poderia. Considere-se o fato de serem 12 as mudanças de tamanho e 12 os capítulos do livro, permitindo pensar que Carroll utiliza as transformações da personagem com o objetivo deliberado de fazer seu romance progredir, à medida que as novas dimensões de Alice impõem-lhe uma série de novas circunstâncias.

Tome-se por exemplo um dos episódios iniciais em que Alice está num grande salão e identifica uma porta pequena na parede, antes escondida por uma cortina. A menina então encontra uma chave minúscula, sobre a mesa de vidro, e abre a portinha, revelando um belo jardim. Sua intenção é chegar àquele novo lugar. E a necessidade de Carroll é avançar no romance, criando novas peripécias para a protagonista. A transformação do tamanho aparece, pois, como uma solução para o desejo de Alice (e de Carroll).

Lewis Carroll

O elemento mágico capaz de causar as alterações no corpo da menina não é único, ao longo da trama. Ora é o líquido de uma garrafa (na qual há a inscrição “BEBA-ME”), ora são pedaços de cogumelo. O fato de segurar um leque ou comer um bolo também tornam-na maior ou menor, de acordo com a necessidade de se lhe apresentarem novas condições para a aventura. Mas é interessante perceber que a última das transformações ocorre espontaneamente, sem que seja preciso ato algum da personagem – talvez porque Alice estivesse prestes a voltar à realidade, fora do mundo do sonho.

O fato é que acontecem as mudanças, independentemente de haver uma causa única, e isto parece integrar os episódios da história. O “problema do tamanho” vai sendo discutido não só pela protagonista, mas também pelos demais personagens com quem ela se depara. Uma das alterações no tamanho de Alice ocorre de maneira desproporcional, tornando seu pescoço imensamente comprido. Movendo-o para cima, para baixo, para os lados, ela descobre uma possibilidade inimaginável de observação, mas também é identificada como uma “cobra” pela pomba que aparece diante de si (CARROLL, 2002:51-2). E este estranhamento ocorre igualmente em outros trechos, como na cena do tribunal constituído para julgar o valete, suspeito de roubar tortas. O Rei lê em seu bloco de anotações:

“Todas as pessoas com mais de um quilômetro e meio de altura devem se retirar do tribunal.”
Todos olharam para Alice.
“Não tenho um quilômetro e meio de altura”, disse ela.
“Tem sim”, disse o Rei.
“Tem quase três quilômetros”, acrescentou a Rainha (CARROLL, 2002:117).


Ao longo do julgamento, de fato, Alice vai crescendo num ritmo pouco mais vagaroso do que até então experimentara no país das maravilhas. Ainda assim, o limite desta transformação é o tamanho natural da menina, dimensão que possuía antes de entrar pelo buraco do coelho. Portanto, a estupefação dos presentes no julgamento e o exagero do Rei e da Rainha servem mais para evidenciar a diferença do que propriamente para propor ao leitor um tamanho tão grandioso quanto um quilômetro e meio de altura. Além disso, no desenvolvimento das ações, com o conseqüente crescimento, Alice se vê numa outra condição para dialogar com este novo mundo, e o tamanho faz ela assumir uma postura mais confiante diante do absurdo das situações.

Não só para marcar as discrepâncias de dimensão entre os personagens e criar o efeito desejado, o “problema do tamanho” perpassa a obra, dando ao romance a idéia de unidade, exemplificado pelo que já foi dito. (...) O tamanho constitui a unidade em Alice. Ele interfere nas ações dela e dos outros personagens, agregando as pequenas histórias e permitindo a leitura sob diversos aspectos. A seguir, tratam-se alguns deles, a partir dos quais Carroll foi estudado por outras academias que não a de Literatura. Mas interessa particularmente aqui a abordagem que se poderia fazer sobre o tamanho como recurso, sob ponto de vista psicanalítico, existencial e de potência. O sentido também merecerá uma breve análise, à medida que é tema quase obrigatório quando se trata de qualquer investigação sobre os livros de Alice.

Yulia Valeevoy

Aspectos do Tamanho no Desenvolvimento da Trama

Aspecto Psicanalítico


A biografia de Charles Lutwidge Dodgson permite uma série de suposições quanto ao seu comportamento emocional, quanto à sua conduta pessoal em relação às crianças com quem ele se relacionava. O escritor costumava procurar meninas nas estações de trem, nas ruas e em outros lugares e buscava a aproximação – com consentimento dos pais – para fotografá-las ou desenhá-las despidas. Lewis Carroll tinha verdadeira adoração por elas, e procurava entretê-las das mais diferentes formas, fosse com jogos ou contando histórias. Tendo em vista a rigidez moral da sociedade à sua época, foi considerado pedófilo, classificado como indecente. E este fascínio mal compreendido chegou a afetar a relação que tinha com Alice Liddell, a preferida de suas crianças. Há indícios de que a mãe da menina passou a reprovar o assédio brando do escritor, rasgando-lhe as cartas (CARROLL, 2002:xii).

Mas até onde seus biógrafos podem saber, nunca houve qualquer tipo de consumação sexual de suas relações com crianças, sendo todas assumidas do ponto de vista do amor platônico. Algumas declarações cheias de pudor do reverendo corroboram esta tese. O simples fato de fotografar exclusivamente indivíduos do sexo feminino – até porque consta que tinha aversão aos meninos – ajudou a criar a atmosfera apropriada às intenções da análise psicanalítica, considerando apenas os atos da vida de Dodgson. Portanto, levando-se em conta apenas as passagens conhecidas, já seria possível compreender melhor sua psique e parte de seus comportamentos.

Deleuze resume a maior parte das abordagens sobre o autor de Alice:
O diagnóstico psicanalítico freqüentemente formulado sobre Lewis Carroll é: impossibilidade de enfrentar a situação edipiana, fuga diante do pai e renúncia à mãe, projeção sobre a garotinha ao mesmo tempo como identificada ao falo e como privada de pênis, regressão oral-anal que a isso se segue. Todavia, tais diagnósticos têm muito pouco interesse e sabe-se muito bem que não é assim que a psicanálise e a obra de arte (ou a obra literário especulativa) podem estabelecer seu encontro. (DELEUZE, 2000: 244)

Não bastassem os atos do reverendo Charles Dodgson, o fato de as obras de Alice serem repletas de símbolos, situações “absurdas” e elementos muito visuais, é de apelo inegável à interpretação psicanalítica. Esta visão se torna ainda mais evidente quando confrontamo-na com o fato de Lewis Carroll ser um interessado pelos processos de escrita automática[5]. Martin Gardner vacila sobre a validade deste tipo de análise quando o objeto em questão é o livro de nonsense para criança: “são ricos demais em símbolos. Os símbolos têm explicações demais”(CARROLL, 2002:xii). Já Nelly Novaes Coelho, em apêndice à obra A Literatura Infantil, afirma que a “decodificação psicoanalítica de seu [Carroll] universo literário, a partir de uma possível intencionalidade erótica, é inteiramente verossímil” (COELHO, 1981:338). Controvérsias à parte, é necessário perceber o conteúdo potencialmente psicológico da escrita de Carroll, cujas referências seriam da ordem dos arquétipos[6] ou de sua psique pessoal.

Assim, podemos considerar o aspecto psicanalítico apenas a partir do tema correlato a este estudo e suas implicações. O “problema do tamanho” tem grandes chances de manifestar-se na obra por razões inconscientemente vinculadas aos desejos de Carroll, bem como pode corresponder às aspirações psíquicas de seus leitores, à medida que estão – ao menos em tese – em fase de crescimento.

Nicole Claveloux

O Arquétipo da Criança e o Problema do Tamanho

Já não há mais muita divergência quanto à presença dos arquétipos nos mitos e nos contos de fada, assim como no sonho e outras manifestações humanas. Num plano inconsciente estes temas vêm se repetindo ao longo da história, em proporção maior ou menor à medida que seu motivo é instigado pelas sociedades ao longo do tempo. (...) E embora seja impossível dizer a origem exata de um conteúdo (arquetípico), é possível circunscrevê-la. Assim, fantasias, sonhos, imagens e mesmo mitos aos quais não pudesse ser atribuída uma aquisição pessoal existem no inconsciente coletivo, segundo Jung, graças à herança dos arquétipos. Então, ocorre que a representação desses “motivos” no plano consciente se dá através de uma metáfora.
Dessa forma, tem-se uma série de elementos que poderia representar, por exemplo, o nascimento de uma nova geração de homens, cuja imagem mais emblemática seria a profecia sobre um “deus-criança”. Muito além da menção mais óbvia, no Ocidente (o menino-Jesus), essa personificação poderia acontecer através de outros seres, como anões, elfos, o pequeno polegar, entre outros. Mas Jung não deixa de afirmar que paira sobre o Jesus menino, ainda vivo, na lenda de Cristóvão, “aquele aspecto típico de ser ‘menor que pequeno’ e ‘maior que grande’” simultaneamente (JUNG, 2002:159).

A partir daí, surge a hipótese de que o arquétipo da criança presente no inconsciente coletivo é passível de ser representado no clássico por um autor como Carroll. Ainda mais se considerarmos o “caráter futuro” deste arquétipo – afinal a criança encerra o tempo futuro, sendo este motivo parte do nosso inconsciente. A idéia parece mais plausível quando a aventura de Alice é um constante “porvir”, sempre uma iminência de algo, um grande plano de possibilidades que vão se descortinando à medida que a menina tem seu tamanho alterado. Assim o futuro na história é como o futuro presente no motivo da criança – e isto ocorre praticamente até a última página do romance.

John Tenniel

Carl Jung cita o “abandono” e o “perigo da perseguição” como adversidades impostas à criança, neste arquétipo de inconsciente coletivo. É como se todos pudessem, inconscientemente, saber a criança em relação aos contratempos inerentes àquela fase da vida; e, vencendo estes obstáculos, seria possível representá-la como “criança-deus” ou “herói-criança”. Pois Alice poderia ser a manifestação consciente de algo originado como herança coletiva, este motivo de uma heroína submetida a toda uma sorte de perigos, perseguindo as novas experiências e, principalmente, em busca de um fim para sua peregrinação. Não só sob o ponto de vista da criação literária, mas também da recepção da obra de arte: sob o ângulo do inconsciente coletivo dos leitores, não se pode desconsiderar a possibilidade do arquétipo da “criança-herói” ter correspondência com o conteúdo do clássico, alçando-o a este status.

Jung vai além e oferece uma análise adequada à problematização do tamanho:
O motivo da “insignificância”, do estar exposto a, do abandono, perigo, etc. procura representar a precariedade da possibilidade da existência psíquica da totalidade, isto é, a enorme dificuldade de atingir este bem supremo. Caracteriza também a impotência, o desamparo daquele impulso de vida o qual obriga tudo o que cresce a obedecer à lei da máxima auto-realização; neste processo as influências do ambiente colocam os maiores e mais diversos obstáculos, dificultando o caminho da individuação (JUNG, 2002:167). [grifo nosso]

Na análise de Alice no país das maravilhas, algumas correspondências podem ser apontadas a partir da abordagem jungiana. A primeira delas diz respeito ao tamanho reduzido, que por si só parece sugerir insignificância – logo no primeiro capítulo, a transformação pela qual Alice passa leva-a a refletir sobre a possibilidade de reduzir até acabar, fazendo-a “sumir completamente, como uma vela” (CARROLL, 2002:17); e após segurar o leque e calçar as luvas do Coelho Branco, o tamanho pequeno a faz pensar em si mesma como algo insignificante: “‘as coisas estão piores que nunca’, pensou a pobre criança, ‘pois nunca fui tão pequena assim antes, nunca!’” (CARROLL, 2002:23) Este delimitação parece corresponder, portanto, ao arquétipo da criança – pequena ou insignificante. Noutro momento, Alice bebe o líquido de nova garrafa e torce para que os efeitos sejam os desejados: “Espero que me faça crescer de novo, porque estou realmente cansada de ser esta coisinha tão pequenininha”(CARROLL, 2002:36)[7].

Estes trechos também evidenciam o desamparo do qual fala Jung. A continuação da segunda cena lança Alice numa lagoa de lágrimas – que ela própria chorara momentos antes. Os parâmetros do arquétipo se confirmam quando Alice repreende a si mesma, e vence cada obstáculo, em busca da auto-realização. Emerge então – do inconsciente e também da lagoa de lágrimas – a heroína-criança, capaz da individuação dificultada pelo ambiente, capaz da superação.

Este é outro ponto de convergência entre o arquétipo e a obra de Carroll: a busca por uma individualidade. Se há um “caminho da individuação” a ser trilhado pelo herói (heroína, no caso) na constituição do arquétipo da criança, e este é o espaço de uma série de dificuldades, então a crise de identidade à qual Alice é constantemente submetida encontra referência no inconsciente coletivo – novamente, do autor e dos leitores. Alice questiona-se o tempo todo, sobre as ocorrências à sua volta, sobre suas decisões, mas essencialmente sobre quem ela é: “Será que fui trocada durante a noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei esta manhã? (...) Mas, se não sou eu mesma, a próxima pergunta é: ‘Afinal de contas, quem sou eu?’ Ah, este é o grande enigma!” (CARROLL, 2002:21).

Jan Svankmajer

O elemento desencadeador desta crise de identidade é o “problema do tamanho”. Além das características atribuídas a ele, anteriormente, também o recurso impõe à heroína esta dúvida existencial, correspondente ao arquétipo. Não só aqui, mas em outros trechos nos quais há o questionamento sobre o seu ser há uma relação direta entre o tamanho e o estranhamento quanto ao seu próprio significado. Alice diz para a lagarta: “Receio não poder me explicar (...) porque não sou eu mesma, entende?” (CARROLL, 2002:45). Não é a mesma Alice porque está crescendo e diminuindo o tempo todo, o que a impede de reconhecer seu verdadeiro eu. Deleuze confirma esta tese: “Todas estas inversões [entre as quais se insere o tamanho] tais como aparecem na identidade infinita têm uma mesma conseqüência: a contestação da identidade pessoal de Alice, a perda do próprio nome.” (DELEUZE, 2000:3) Mas o arquétipo permanece à medida que ela continua a trilhar o mencionado caminho da auto-realização, pois toda dúvida não a impede de continuar questionando, continuar desejando mudar seu tamanho para ultrapassar portas, adentrar recintos novos.

Mas é interessante perceber como este processo ocorre de maneira inversa, quando o arquétipo do herói-criança atinge o leitor-criança no momento em que este último tem contato com o conto de fadas. Através da realização das fantasias no consciente dos leitores, é possível supor um fortalecimento de mecanismos de individuação, a partir da análise de Bruno Bettelheim:

O herói do conto de fadas tem um corpo que pode executar feitos miraculosos. Identificando-se com ele, qualquer criança pode-se compensar – em fantasia e através da identificação – de todas as inadequações, reais ou imaginárias, do seu próprio corpo. Pode fantasiar que ela também, como o herói, pode escalar o céu, derrotar gigantes, mudar sua aparência, tornar-se a pessoa mais poderosa ou a mais bonita – em resumo, fazer o seu corpo ser e efetuar tudo o que uma criança possivelmente poderia almejar. (...) O conto de fadas até mesmo projeta esta aceitação da realidade para a criança, porque enquanto ocorrem as transformações extraordinárias no corpo do herói à medida que a estória se desenrola, ele torna-se novamente um mero mortal quando a luta termina. (BETTELHEIM, 2002:73)

E é exatamente o que ocorre à personagem quando a viagem pelo país das maravilhas se encerra: Alice volta a ser normal, distante das transformações bruscas de tamanho, de volta à comodidade do crescimento regular da infância. Mas note-se o fascínio potencial dos pequenos leitores proposto por Bettelheim quanto ao recurso de “mudar a aparência”, transformar-se em algo diverso da realidade tal e qual acontece à Alice em relação ao “problema do tamanho”. O tema, outrora apontado como forma de integrar os episódios da trama, aqui aparece como possível fonte de geração de individualidade. Ao leitor é sugerido um recurso que, se por um lado impõe dificuldades à personagem – de acordo com a visão jungiana –, causando-lhe inclusive uma crise de identidade, por outro quer significar uma chance de identificar-se com o fantástico da situação e resolver suas questões mais íntimas, como possíveis insatisfações quanto à sua compleição física. Bettelheim aponta para o benefício à individualidade quando reconhece, na satisfação dos desejos sob a forma da fantasia, que “a criança fica mais em paz com o seu corpo tal como é na realidade” (BETTELHEIM, 2002:73).

Ainda sobre o arquétipo da criança, em especial sobre o aspecto do “heroísmo”, Jung julga-o implícito no paradoxo “menor do que pequeno, maior do que grande”, o que abre um novo horizonte para análise dos temas de Alice, supondo-os localizados no inconsciente coletivo.

Annie Liebowitz

Aspecto de Potência

Nos fragmentos que compõem cada capítulo de Alice no país das maravilhas – e estes por sua vez constituem a obra – é possível perceber uma quantidade de circunstâncias nas quais o “problema do tamanho” representa possibilidades. Como recurso literário, isto significa que a protagonista vive pequenos clímax quando supera seus obstáculos graças a algum dos efeitos mágicos próprios do novo mundo no qual foi inserida. Então, Alice se vê diante das dificuldades mencionadas por Jung, que fazem parte do arquétipo da criança sob o ponto de vista da invencibilidade.

O heroísmo e a divindade presentes no arquétipo da criança, mesmo considerando sua insignificância (tamanho “menor que pequeno”), de maneira paradoxal lhe conferem o poder da invencibilidade (tamanho “maior que grande”), garantia de que aquele ser encerra de fato o elemento futuro – do contrário, o inconsciente coletivo não teria mecanismos de garantir a criança como plano passível de ser executado. De acordo com Jung, “o impulso e compulsão da auto-realização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força invencível, mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável”(JUNG, 2002:171).

Saindo do plano inconsciente dos leitores, este herói invencível do arquétipo no conto de fadas obtém a realização no consciente da criança, segundo Bruno Bettelheim, quando deixa a fantasia e vai para o mundo real. O leitor identifica-se com o herói e, na realidade, assume suas características à medida que consegue superar suas ansiedades e buscar um comportamento mais independente. Aquele autor menciona que “é importante prover a criança moderna com imagens de heróis que partiram para o mundo sozinhos e que, apesar de inicialmente ignorando as coisas últimas, encontram lugares seguros no mundo seguindo seus caminhos com uma profunda confiança interior”(BETTELHEIM, 2002:19).

Pois este herói invencível, que surge em busca de autoconfiança, é a Alice que, aqui e lá ao longo da obra, fica indignada com os absurdos do país das maravilhas, assume uma função questionadora, discute, se irrita e chega à confrontação. O “tamanho” como potência faz o comportamento da protagonista oscilar, sem deixar de mencionar que, quando causa a crise de identidade mencionada anteriormente, o recurso (o poder) por vezes também passa imperceptível, impedindo-a de reconhecer no próprio corpo a potência, a invencibilidade – como proposto por Jung.

Vejam-se, por exemplo, os primeiros trechos do capítulo 4, em que o Coelho Branco confunde-a com uma criada, lhe dá uma ordem e o temor obriga-a a executar a tarefa. Mas logo questiona-se sobre o absurdo da situação, seu próprio papel e seu poder: “Como parece esquisito (...) receber incumbências de um coelho! Logo, logo a Dinah vai estar me dando ordens!” (CARROLL, 2002:36), referindo-se à sua gata, que deixou no mundo real.

Gorohovsky Semynovich

As referências de Alice, portanto, tornam às convenções do mundo real, e não do mundo da fantasia. O comportamento oscilante da personagem fica entre aceitar as novas condições ou indignar-se. Quanto ao tamanho como potência, ele age inversamente nas duas frentes: ora Alice percebe as possibilidades da mudança de tamanho, regozija-se, e as utiliza como no arquétipo – sentindo-se invencível, divina; ora esta potência passa despercebida, e aí cabe melhor ao seu comportamento o desejo do mundo real, do plano consciente.

É o que ocorre na seqüência da cena, uma indecisão quanto ao que seria melhor para seu próprio destino. À procura das luvas e do leque – tarefa da qual o Coelho a incumbiu –, ela encontra mais uma garrafa e bebe seu líquido, esperando a transformação. Porém, os efeitos superam, inicialmente, suas expectativas, tornando-a maior do que o recinto. Presa dentro da casa do Coelho, ela vacila:

“Era muito mais agradável lá em casa”, pensou a pobre Alice, “lá não se ficava sempre crescendo e diminuindo, e recebendo ordens aqui e acolá de camundongos e coelhos. Chego quase a desejar não ter descido por aquela toca de coelho... no entanto... no entanto... é bastante interessante este tipo de vida! Realmente me pergunto o que pode ter acontecido comigo! Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando eu for grande, vou escrever um... mas sou grande agora”, acrescentou num tom pesaroso (CARROLL, 2002:37).

Marion Janin

As reflexões de Alice quanto à potência do tamanho remetem-na novamente ao paradoxo do invencível-insignificante. É preciso ser de fato iníquo (ou pequeno, independentemente do tamanho físico) para receber ordens de animais que, no mundo real, teriam dimensões nada ameaçadoras. Portanto, a própria casa (a realidade) se torna desejável diante destes obstáculos.
Por outro lado, as novidades do país das maravilhas (e, por que não dizer, do tamanho) fazem-na sentir a potência do recurso mágico, desejá-lo para sentir-se invencível – “quando eu for grande, vou escrever um [conto de fadas]”. É como se dissesse que gostaria de dominar aquele mundo, controlar suas regras, regular suas engrenagens. E só o que lhe parece permitir isso é o tamanho, embora o conceito de “grande” ou “pequeno” já não se lhe afigurem tão decisivos assim.

Carroll leva esta reflexão além, e conclui de maneira mais explícita que tamanho é poder. Ainda presa na casa, a protagonista ouve passos na escada: “Alice sabia que era o Coelho à sua procura, e tremeu até fazer a casa sacudir, completamente esquecida de que agora era umas mil vezes maior do que o Coelho e não tinha razão alguma para temê-lo”(CARROLL, 2002:37). Assim ficam associadas as duas noções: potência e tamanho; embora no plano do inconsciente coletivo o arquétipo da criança dê margem ao paradoxo do pequeno-invencível, portanto poderoso.

Entretanto, o “problema do tamanho” sob o aspecto da potência não se limita à noção de força ou invencibilidade. São numerosas as ocorrências nas quais o tamanho interfere no destino de Alice, conferindo-lhe outras potencialidades, como uma visão privilegiada por um pescoço comprido, por exemplo. Também a “falta de tamanho” reduz as potencialidades de Alice, como quando encontra um “enorme” filhote de cachorro no bosque e se vê impossibilitada de ensinar-lhe alguns truques.

Mas a principal reflexão promovida pelo “problema do tamanho” está mesmo vinculada à auto-confiança, e à construção de uma individualidade[8] – de Alice, dos leitores de Alice (e quem sabe do próprio Carroll?).

Assim, compreende-se o destemor de Alice na cena final do julgamento, ainda no sonho, momentos antes de acordar, em que confronta a Rainha, sem se importar com suas ameaças. Mandada calar, a menina investe contra as cartas, fazendo pouco delas. E Carroll aponta para o aspecto da potência, no trecho entre parênteses: “‘Quem se importa com vocês’, disse Alice (a essa altura, tinha chegado a seu tamanho normal). ‘Não passam de um baralho!’” É interessante reparar que a auto-confiança da personagem vai crescendo proporcionalmente à chegada do tamanho, ao longo do julgamento do valete. Pouco a pouco, vai se sentindo mais segura, e o próprio trecho em que o Rei manda-a sair do tribunal, como já foi mencionado anteriormente, denota isto. Alice percebe a transformação gradual e isto gera progressivamente uma noção de poder, que ampara sua decisão de ficar.

Naquele momento, mais que em outros trechos da obra, Alice é a representação do arquétipo da criança-herói, invencível, auto-confiante, e, como se vai revelar logo em seguida, amparada pelos temas do seu inconsciente – afinal, a menina na verdade está dormindo e sonha com aquele mundo de fantasia irreprimível.

Maggie Taylor
O sentido

É praticamente impossível tratar de qualquer tema vinculado ao mundo do sonho de Alice sem mencionar que Lewis Carroll criou um ambiente cujo sentido é diverso do que rege a realidade, ou o que está ligado ao conceito de senso comum. O próprio termo nonsense é um indicativo de subversão, de que o sentido como tal é transfigurado para que o absurdo seja verossímil, dentro de uma nova ordem de coisas que cercam Alice.

Em artigo outrora publicado como introdução à sua própria tradução de Alice, Ana Maria Machado reafirma a importância de reconhecer a inversão de sentido proposta por Carroll, principalmente considerando o aspecto peculiar de certas “piadas” do autor. Como já foi mencionado, o reverendo Charles Dodgson fez referências a questões locais, cuja compreensão ficou vinculada de maneira quase definitiva ao povo inglês, ora mais especificamente ao povo de Oxford, que viveu na segunda metade do século XIX. Portanto, é possível supor, segundo a tradutora, que parte das brincadeiras com palavras sequer fosse compreendida como nonsense – à medida que não se pôde chegar mesmo ao sentido, quanto mais ao não-sentido. Sobre o tema, Ana Maria ainda alerta:

Como ele era professor de matemática e um estudioso de lógica e filosofia, era fascinado pelo sentido e o não-sentido de tudo. Ou pelo nonsense, como dizem os ingleses. Um termo que não tem tradução exata em português, mas que não designa uma coisa sem sentido, e sim algo que tem um sentido inverso, uma lógica ao contrário, vizinha do absurdo, mas nem por isso menos lógica (MACHADO, 2001:200).

Em obra intitulada A Lógica do Sentido, Gilles Deleuze toma o exemplo de Alice como ponto de partida para uma série de análises. Em uma das questões iniciais, o filósofo procura estabelecer os termos do paradoxo, considerando o “problema do tamanho”: “Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é menor e maior. Mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro” (DELEUZE, 2000:1). Para Deleuze o princípio do paradoxo aponta para o fato de que os dois sentidos se resolvem pela unidade – um não existindo sem o outro. Ou o “paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo” (DELEUZE, 2000:1). Assim, é plausível que o sentido e o não-sentido em Alice só podem existir quando há o entendimento do primeiro.

Mas, acima de tudo, o não-sentido rompe um contrato com a realidade, e propõe ao indivíduo caminhar ao contrário, deixando para trás todas as convenções estabelecidas em sua experiência comum. Como exercício de ficção, Deleuze fixa o limite deste vaivém entre os sentidos na própria linguagem, que, ao mencionar algo “demasiado”, o faz como forma de chamar a atenção para o seu contrário: o insuficiente. “O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas”(DELEUZE, 2000:3).

Maraja

Numa perspectiva histórica, esta inversão do sentido pode ser caracterizada como crítica, considerando a Inglaterra de meados do século XIX como um dos países onde mais se afirmava a racionalidade, ou ao menos um princípio lógico para justificar tudo na sociedade – inclusive questões difíceis de serem justificadas, como os privilégios, como a miséria. Diante desta perspectiva, a professora Nelly Novaes Coelho parece concordar com Deleuze quanto à utilização lingüística:

É esse nonsense que encontramos. É a lúcida consciência do absurdo das regras e valores absolutos que, instituídos em sistema, regem a vida do homem. E a denúncia desse absurdo se faz através de um outro absurdo: o que resulta da subversão não só das leis naturais que nos regem, mas principalmente da linguagem (COELHO, 1981:314).

A inversão de sentido se dá em vários planos ao longo da obra. Numa medida, “o problema do tamanho” representa para Alice a supressão de uma ordem em que os indivíduos crescem num ritmo regular, com limites conhecidos em termos médios (tanto para altura como para o comprimento dos membros). Este fenômeno, maximizado pelo curto espaço de tempo no qual ocorre a transformação, confunde a noção de sentido da protagonista, levando-a à crise de identidade mencionada anteriormente. Mas o tormento surge independentemente de Alice questionar sua própria existência.

“Ser de tantos tamanhos diferentes num dia é muito perturbador”, diz ela para a lagarta. Diante dos absurdos que a cercam, algumas vezes a menina chega a desejar a volta à realidade; noutras ela resolve enfrentar sua própria dificuldade de entender, passando à discussão com os personagens “loucos” sobre a necessidade de estabelecer um sentido.

E assim têm lugar as cenas que, provavelmente, correspondem ao que o próprio Carroll chamou de “scraps” ou “single ideas which came of themselves”, os trechos comumente lembrados como pontos altos do diálogo carrolliano. É evidente que certas situações implicam o nonsense, mas a ocorrência parece ser mais intensa quando há o confronto entre o discurso de Alice (sentido, amparado pelo senso comum) e o dos personagens do país das maravilhas (nonsense, amparado no princípio da inversão ou algo próximo do absurdo). Veja-se, por exemplo, o estranhamento da menina ao deparar-se com o relógio da Lebre de Março, que só marca os dias do mês e não as horas. O chapeleiro intervém e cria nova confusão: um relógio poderia marcar apenas os anos, como o dele. “Alice ficou terrivelmente espantada. A observação do Chapeleiro lhe parecia não fazer nenhum tipo sentido, embora, sem dúvida os dois estivessem falando a mesma língua” (CARROLL, 2002:69).

É interessante perceber que o autor sugere a linguagem como o contraponto que deveria dar sentido à conversa, embora fosse aqui apenas um código. Porém, como estabeleceu Deleuze, o caso não é propriamente solucionar o dilema do sentido através da língua, e sim compreender que sentido e nonsense estão em pólos opostos, podendo-se ir de um ao outro através do discurso.

Renée C.K.

Pouco antes, Alice saíra da lagoa de lágrimas e reunira-se com um grupo de aves, na intenção de secar-se. Ali os diálogos entre os pássaros e o camundongo parecem chegar às raias do disparate, e o autor dispensa a intervenção de Alice, tamanho o despropósito dos discursos. Quem evidencia o caso, novamente clamando por soluções lingüísticas, é a Aquieta, que critica a fala do Dodô: “Fale inglês! (...) Não sei o sentido de metade dessas palavras compridas e, o que é pior, nem acredito que você saiba!” (CARROLL, 2002:28)

Deve ser uma tônica dos confrontos “sentido-nonsense”, na obra, a idéia de que a solução está na linguagem, e não na transformação do ambiente. Isto ocorre muito embora existam trechos em que o esforço de diálogo de Alice é tão penoso, sob ponto de vista da dificuldade em avançar na direção do sentido, que ela chega a irritar-se, como quando conversa com o lacaio, no capítulo 6, “Porco e Pimenta”.

O esquisito interlocutor com aparência de sapo recebe-a diante da porta de uma casa, onde Alice tenciona entrar. Perguntado diversas vezes sobre a melhor forma de ganhar o recinto, o lacaio oferece um leque de respostas vagas, ora descontextualizadas, ora beirando o desatino. Irritada, a menina desiste: “Oh, não adianta falar com ele, (...) é completamente idiota” (CARROLL, 2002:57). Mais adiante, o Gato de Cheshire procura explicar a ordem, ou o sentido invertido do país das maravilhas: “Somos todos loucos aqui. Eu sou louco. Você é louca” (CARROLL, 2002:63).

Loucos, idiotas, confusos ou que adjetivos se atribuam aos personagens e seus diálogos absurdos, é inegável que eles fazem o contraponto – proposto pela noção de paradoxo em Deleuze – à realidade da menina. As pistas de que isto ocorre com freqüência estão todas no comportamento de Alice, a qual resiste ao comentário do gato, negando a própria loucura. Só o que ela não consegue resolver como sendo fruto de um comportamento alheio – e que a atormenta – é o “problema do tamanho”. De resto, é o mundo à sua volta que se transforma. A única transformação física pela qual passa é a experiência de crescer e diminuir, para não tornar às hipóteses já levantadas quanto às mudanças internas da menina – que mudam o seu humor, testam os seus valores e sua noção de realidade.

Também o sentido, portanto, tão mencionado nas análises da obra de arte composta por Lewis Carroll, se coloca em contraponto aos dilemas causados pelo “problema do tamanho”. Face à maior parte dos absurdos do país das maravilhas, Alice pode ter um comportamento até certo ponto seguro – balizado pela realidade, pelo consciente, pelo sentido. Porém, quando as implicações do nonsense atuam sobre o seu corpo, diante do espantoso recurso que lhe altera o tamanho, perpetuando uma série de provações ao seu íntimo, Alice assume suas inseguranças, questiona-se, chora, teme, foge, enfim, deixa falar tudo o que diz respeito à sua assimilação da realidade experimentada bem antes de aventurar-se pela toca do coelho.

* Ricardo Benevides é Mestre em Literatura Brasileira pela Uerj. Foi editor de Literatura da Ediouro e editor de texto da Editora Paz e Terra. Ganhou o prêmio de autor revelação (2000) da FNLIJ pelo livro Fabíola foi ao vento (Revan).

Jan Svankmajer

Bibliografia

ARISTOTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. Pref. Goffredo Telles Júnior. Intr. e notas Jean Voilquin e Jean Capelle. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d.
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fada. Trad. Arlene Caetano. 16. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002.
BOURNEUF & OUELLET, Roland & Réal. O universo do romance. Coimbra: Almedina, 1976.
CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Ilustrações originais, John Tenniel. Introdução e notas, Martin Gardner. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Trad., adapt. e intr. Monteiro Lobato. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1969.
COELHO, Nelly Novaes. A Literatura Infantil. São Paulo/Brasília: Edições Quíron/INL/MEC, 1981.
DELEUZE, Gilles. A Lógica do Sentido. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.
JUNG, Carl. Os Arquétipos do Inconsciente Coletivo. 2. ed. Trad. Maria Luiza Appy & Dora Mariana Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2002.
MACHADO, Ana Maria. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SALE, Roger. Fairy Tales and After: from Snow White to E.B. White. Cambridge and London: Harvard University Press, 1978.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance. São Paulo: Ática, 2000.

Notas

[1] Ver também nota à edição comentada de Alice em que Martin Gardner menciona os “contos de fada tradicionais, cheios de episódios de horror e em geral com uma moral piedosa. Ao pôr de lado a moral, os livros de Alice inauguraram um novo gênero de ficção para crianças”. Cf. CARROLL, 2002:16
[2] There is nothing contradictory in the fact that these classics, filled with memorable phrases and incidents, are not read or reread with much genuine enthusiasm. The same might be said of Shakespeare and certainly could be said of the King James Bible. What we remember most clearly is what we should remember, bits and pieces, and we do not have to reread either book all the way through to go back and pick these up. Cf. SALE, 1978:102
[3] Alice and Looking Glass are made up almost wholly of bits and scraps, single ideas which came of themselves. Apud SALE, 1978:105
[4] Exemplo dessa obsessão é mencionado por Gardner em nota à edição comentada de Alice. Segundo ele, o número 42 tinha um significado especial para Carroll, que procurava inseri-lo das maneiras mais diversas em suas obras. Não bastasse isto, Dodgson também procurava “encontrar” o número nos lugares mais insuspeitos. Alice Lidell tinha 7 anos e 6 meses, à época do lançamento de Alice através do espelho – multiplicando-se os algarismos chega-se ao “número místico” de Carroll. Cf. CARROLL, 2002:117
[5] Em um ensaio, num único parágrafo, Carroll insiste quatro vezes na mesma questão: “Every such idea and nearly word of dialogue came of itself”. Apud SALE, 1979:102.
[6] Segundo Jung, arquétipo “indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar. A pesquisa mitológica denomina-as ‘motivos’ ou ‘temas’; na psicologia dos primitivos elas correspondem ao conceito das représentations collectives de Levy-Brühl e no campo das religiões comparadas foram definidas como ‘categorias da imaginação’ por Hubert e Mauss. Adolf Bastian designou-as bem antes como ‘pensamentos elementares’ ou ‘primordiais’”. Cf. JUNG, 2002:53
[7] Cf. também p.50, na qual Alice assume seu desejo de crescer: “Bem, gostaria de ser pouco maior, Sir, se não se importasse. (...) Oito centímetros é uma altura tão insignificante para se ter”.
[8] “Os contos de fada, à diferença de qualquer outra forma de literatura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação, e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter.” Cf. BETTELHEIM, 2002:32